http://dx.doi.org/10.14718/RevArq.2016.18.2.3
Adriana Sansão-Fontes1
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro (Brasil)
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
Programa de Pós-graduação em Urbanismo (PROURB)
Aline Couri-Fabião2
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro (Brasil)
Escola de Belas Artes (EBA), Rio de Janeiro (Brasil)
1 Arquiteta e Urbanista, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Mestrado em Urbanismo Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Doutorado em Urbanismo Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Estágio Doutoral na Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona — ETSAB/UPC 2008-2009.
Professora Adjunta III da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Docente Permanente do Programa de Pós-graduação em Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PROURB-FAU/UFRJ), Brasil.
http://orcid.org/0000-0003-0648-3894
adrianasansao@gmail.com
2 Arquiteta e Urbanista Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2003.
Mestrado em Comunicação e Cultura Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.
Doutorado em Urbanismo Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011.
Estágio Doutoral no Laboratoire Architecture-Anthropologie (Paris), 2009.
Pós-Doutorado em Comunicação (ECO/UFRJ, FAPERJ).
Professora Adjunta da Escola de Belas Artes (UFRJ), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil.
http://orcid.org/0000-0002-5459-425X
alinecouri@gmail.com
Recibido: noviembre 18/2015
Evaluado: junio 02/2016
Aceptado: septiembre 23/2016
Cultura y espacio urbano
Para citar este artigo:
Sansao Fontes, A. & Couri Fabião, A. (2016). Além do público - privado: intervenções temporárias e criação de espaços coletivos no Rio de Janeiro [Más allá de lo público y lo privado. Intervenciones temporales y creación de espacios colectivos en Rio de Janeiro]. Revista de Arquitectura,18(2), 27-39. doi:10.14718/RevArq.2016.18.2.3
Resumo
O conceito de espaço público vem sendo redefinido tendo em vista a privatização do espaço, a dissolução dos domínios público/privado e a intensificação do uso das redes sociais, internet e mídias móveis no processo de discussão, apropriação e construção dos espaços cotidianos de vida. Com foco nos dois primeiros processos citados, este artigo pretende discutir, por meio de uma seleção de intervenções temporárias recentes realizadas no Rio de Janeiro, formas de apropriação transitória que lidam com a tensão entre os domínios público e privado, bem como sua colaboração na construção de espaços coletivos para a cidade contemporânea. Como contribuição, apresenta-se a transformação que este tipo de intervenção gera na cidade e como pode ser promovido o uso privado em espaços públicos ou o uso público em espaços privados.
Palavras-chave: ambiente construído, arte urbana, coletivos urbanos, espaço público, espaços ociosos, estacionamentos, urbanismo tático.
Resumen
El concepto de espacio público se ha redefinido en vista de la privatización del espacio, la disolución de los dominios público/privado y la intensificación del uso de las redes sociales, internet y medios móviles en el proceso de discusión, apropiación y construcción de los espacios cotidianos de vida. Con énfasis en los dos primeros procesos apuntados, y a través de una selección de intervenciones temporales recientes en Río de Janeiro, este artículo tiene el objetivo de discutir formas de apropiación transitoria que se ocupan de la tensión entre los ámbitos público y privado y también la característica de permitir la construcción de espacios colectivos para la ciudad contemporánea. Como aporte se reconoce el cambio que genera este tipo de intervención en la ciudad y cómo se puede potenciar el uso privado en espacios públicos y el uso público en espacios privados.
Palabras clave: ambiente construido, áreas vacantes, arte urbano, espacio público, estacionamientos, colectivos urbanos, urbanismo táctico.
Abstract
The concept of public space has been redefined in the view of the privatization of space, the dissolution of public/private domains, and the intensification of the use of social networks, internet, and mobile media in the processes of discussion, appropriation, and construction of the everyday spaces of life. With emphasis on the first two processes, and through a selection of recent temporary interventions in Rio de Janeiro, this article aims to discuss different forms of transitional appropriations that deal with the tension between public and private spheres, as well as with the characteristic of allowing the construction of collective spaces for the contemporary city. As a contribution, the article acknowledged the change that this type of interventions cause in the dissolution of domains and how the use of private spaces in public spaces and the public use in private spaces can be enhanced.
Keywords: Built environment, vacant areas, urban art, public space, parking lots, urban groups, tactical urbanism.
Introdução
Este artigo é um dos resultados da pesquisa "Intervenções temporárias no Rio de Janeiro", realizada pelo Laboratório de Intervenções Temporárias e Urbanismo Tático (LabIT) desde 2011, cujo objetivo é o estudo das intervenções temporárias como forma de transformação positiva da cidade.
Conceitos são criados para lidar, teórica e empiricamente, com questões, objetos e situações que nos atravessam, provocam e exigem posicionamento ou intervenção. No campo do urbanismo e das artes, um dos conceitos que está em plena transformação é o de espaço público.
O meio ambiente construído contemporâneo contém cada vez menos espaços públicos significativos e o espaço público existente é cada vez mais controlado por várias formas de vigilância e cada vez mais investido de significados privados (Ellin, 1997, p. 36).
Ao discutir espaço público tende-se a pensá-lo ou interpretá-lo a partir de sua propriedade. Entretanto, algumas questões surgem quando pensamos sobre os espaços públicos contemporâneos: seria o direito legal o que fundamentalmente caracteriza um espaço como público? Quando ocorrem atividades públicas em um espaço legalmente privado, poderíamos considerar esse espaço temporariamente público? Em diversas cidades atividades de cunho privado são realizadas em espaços públicos cotidianamente. Moradores de rua praticam atividades de cunho privado ao ar livre, pessoas tratam de assuntos pessoais em transportes coletivos, ruas, calçadas. Isso configuraria uma privatização temporária desses espaços? Estariam as fronteiras entre espaços públicos e privados sendo esvaecidas? Poderíamos usar um novo termo que não os antigos "espaço público" e "espaço cívico" para fazer referência aos espaços nos quais a participação e a criação de situações no espaço urbano partem de iniciativas individuais ou de pequenos grupos e que alteram, ainda que temporariamente, as dinâmicas cotidianas?
A hipótese principal apresentada neste artigo é de que o conceito de "espaço público" pode atingir níveis que ultrapassam a questão da propriedade, e espaços coletivos podem surgir em espaços entendidos tradicionalmente como públicos ou privados. Assim, os conceitos de "público" ou "coletivo" transcendem aspectos legais do espaço e apresentam características similares àquelas que Hakim Bey (2001) chama de Zonas Autônomas Temporárias (TAZ):
A TAZ é uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para se refazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la. (...) a TAZ pode, em relativa paz e por um bom tempo, "ocupar" clandestinamente essas áreas e realizar seus propósitos festivos. (Bey, 2001)
A TAZ é "utópica" no sentido que imagina uma intensificação da vida cotidiana ou, como diriam os surrealistas, a penetração do Maravilhoso na vida. Mas não pode ser utópica no sentido literal do termo, sem local, ou "lugar do lugar nenhum". A TAZ existe em algum lugar. (Bey, 2001)
Mencionamos o aspecto festivo do momento descontrolado, e que se concentra numa espontânea, ainda que breve, auto-organização. Ele é "epifânico": uma experiência de pico, tanto em nível social quanto individual. (Bey, 2001)
Neste artigo temos como principal objetivo colocar em discussão a noção de "espaço público", atualizando-o sob a forma de "espaço coletivo". Apresentamos as intervenções temporárias como ferramentas essenciais na produção desses espaços. Assim, colocamos em debate os modos de produção e de construção das cidades contemporâneas, contrapondo o urbanismo de prancheta e o urbanismo tático.
As fontes da pesquisa desenvolvida são teóricas e experimentais, envolvendo, na parte teórica, artigos e livros que discutem o tema, e na parte experimental, sites, exposições, ações e mostras de arte pública.
Este artigo trata do espaço público sob a perspectiva de seu uso coletivo. Tem início com a conceptualização do que entendemos por intervenção temporária e de como ela opera no espaço urbano e social das cidades contemporâneas. Posteriormente, apresentamos a hipótese de que o espaço coletivo é o espaço público da contemporaneidade, para depois analisar casos de intervenções onde podemos identificar modos de diluição dos domínios público e privado; casos nos quais os limites entre esses dois conceitos são tornados menos rígidos e esvaecidos. A partir daí, investiga como a intervenção temporária pode colaborar nessa coletivização por meio do que chamamos de "dissolução dos domínios". Intervenções temporárias conseguem diluir fronteiras entre o público e o privado, transformando a cidade de forma latente e criando espaços coletivos plenos para o engajamento social. São apresentados aspectos metodológicos e discutidas possibilidades de dissolução dos domínios e coletivização da cidade por meio de intervenções temporárias realizadas recentemente no Rio de Janeiro (Brasil). Para concluir, são expostos os resultados obtidos nesta pesquisa, enfatizando que as intervenções temporárias agem justamente dissolvendo esses domínios que nos pareciam claros no passado, dentro do campo disciplinar da Arquitetura e do Urbanismo.
Essa reflexão é um dos resultados parciais da pesquisa realizada pelo Laboratório de Intervenções Temporárias e Urbanismo Tático (LabIT), que investiga as intervenções temporárias no Rio de Janeiro como forma de transformação positiva da cidade.
O LabIT surgiu de uma iniciativa interdisciplinar entre pesquisadoras de diferentes instituições do Rio de Janeiro: Adriana Sansão Fontes, do PROURB-FAU/UFRJ (Programa de Pós-Graduação em Urbanismo-FAU/UFRJ), Aline Couri Fabião, da EBA/UFRJ (Escola de Belas Artes/U FRJ) e Joy Till, do Departamento de Artes e Design da PUC-Rio. O Laboratório utiliza como plataforma de análise uma cartografia do temporário disponível em site interativo que oferece infinitos tipos de busca (http://intervencoestemporarias.com.br) e permite entender quais espaços da cidade são apropriados e de que forma, possibilitando aproximações entre eles (Figura 1). A presente abordagem, que relaciona as in tervenções temporárias à criação de espaços coletivos, é uma das aproximações possíveis.
Figura 1. Cartografia do temporário no Rio de Janeiro exibindo as intervenções discutidanesse artigo:
Fonte: Site Intervenções Temporárias no Rio de Janeiro, 2016.
Abra um mapa do território; sobre ele, coloque um mapa das mudanças políticas; sobre ele, ponha um mapa da internet, especialmente da contra-net, com sua ênfase no fluxo clandestino de informações e logística; e, por último, sobre tudo isso, o mapa 1:1 da imaginação criativa, estética, valores. A malha resultante ganha vida, animada por inesperados redemoinhos e explosões de energia, coagulações de luz, túneis secretos, surpresas. (Bey, 2001)
Além da cartografia do temporário, o LabIT busca executar intervenções concretas que possam ativar espaços esquecidos ou subutilizados da cidade, contribuindo para transformações mais duradouras. Essas intervenções são desenvolvidas a partir de oficinas com estudantes de graduação e pós-graduação de cursos das instituições envolvidas, conjugando as disciplinas da arquitetura e urbanismo, artes e design.
Intervenção temporária: o que é e como opera?
Abordando a "Intervenção" como "interferência" —transformação intencional que visa influir sobre o desenvolvimento de determinado espaço— denominamos intervenções temporárias as pequenas ações efêmeras e contestatórias realizadas no espaço urbano que rompem com a escrita contínua e homogênea do cotidiano. Entendemos que as intervenções temporárias têm como característica básica a intenção transformadora do espaço, seja de curta ou longa duração.
A História diz que uma Revolução conquista "permanência", ou pelo menos alguma duração, enquanto o levante é "temporário". Nesse sentido, um levante é uma "experiência de pico" se comparada ao padrão "normal" de consciência e experiência. Como os festivais, os levantes não podem acontecer todos os dias - ou não seriam "extraordinários". Mas tais momentos de intensidade moldam e dão sentido a toda uma vida. O xamã retorna - uma pessoa não pode ficar no telhado para sempre - mas algo mudou, trocas e integrações ocorreram - foi feita uma diferença. (Bey, 2001)
Neste momento específico da alta modernidade, características de transitoriedade em várias esferas das relações sociais e econômicas imprimem traços característicos ao espaço público, como a sensação de hostilidade, o individualismo e as relações superficiais entre cidadãos. As intervenções temporárias, nesse contexto, podem catalisar relações de proximidade e intimidade entre o espaço e os indivíduos da urbis.
Tais intervenções, além da transitoriedade, caracterizam-se pela pequena escala; contém alguma dose de subversão do espaço, relacionada ao uso ou às normas vigentes; buscam interagir com o cidadão e ativar o espaço, colocando-o em movimento; envolvem a participação cidadã; estimulam as relações sociais; e em geral são motivadas por situações particulares (Sansão-Fontes, 2013). O conjunto dessas dimensões, em diferentes intensidades, as coloca em oposição ao projeto padronizado, caro, permanente e de grande escala.
São intervenções temporárias, portanto, as apropriações espontâneas do espaço, as intervenções de arte pública ou arquitetura de pequeno e médio porte e as festas locais, excluindo ações com fins comerciais ou estratégias de sobrevivência, onde não existe intenção de transformação do espaço, independentemente de terem impacto positivo ou negativo na cidade.
Mesmo que muitas das práticas e ações em espaços públicos possam ser —e já são— incorporadas ao sistema de mercado, a conceptualização de "intervenções temporárias" parte do princípio de que essas ações têm algo de questionador, excluindo casos que reafirmam práticas lucrativas e a sociedade do espetáculo.
Espaço coletivo: o espaço público da contemporaneidade
Por meio de um percurso por intervenções temporárias contemporâneas no Rio de Janeiro, pretendemos discutir alternativas que atendam à criação de espaços coletivos no território dessa cidade. Mas por que adotar o termo "espaço coletivo", evitando outros correlatos como espaço público e espaço cívico?
Adotamos o conceito de Solà-Morales (1992), que considera como espaços coletivos todos os lugares onde a vida coletiva se desenvolve, e que podem ser públicos e privados ao mesmo tempo. Descartamos, ou pretendemos superar, a recorrente denominação do espaço público como somente a parte do domínio público não edificado designado para o uso público. Vale lembrar que, segundo Merlin e Choay (1988), em urbanismo o espaço público deve ser colocado em relação ao espaço privado, onde desde o século XVIII o público é considerado lugar do anonimato e dos encontros informais, e os espaços privados, locais de trabalho e vida doméstica. O espaço público, segundo Bauman (2000), divide-se na contemporaneidade em espaços prioritariamente de passagem e de consumo. Consideramos que o conceito de espaço público está em plena transformação, e é necessário (re)pensá-lo não como um negócio, mas como um lugar de engajamento democrático (Ferguson, 2014), criador de espaços-tempo suspensos, distintos da lógica de produção-consumo. Assim, precisamos refletir efetivamente sobre as fronteiras e interfaces entre o público e o privado.
O espaço público hoje é um conjunto de comportamentos que cristalizam em um lugar que não tem necessariamente uma natureza jurídica pública, embora tenha a capacidade de oferecer a seus habitantes potenciais o marco para um ato de compartir coletivo, mesmo que temporário (La Varra, 2008, p. 13).
Concordamos com Solà-Morales (1992), quando diz que o importante nas atuais intervenções é a atenção aos espaços, nem públicos nem privados, mas coletivos, fazendo desses lugares intermediários espaços não estéreis e partes estimulantes do tecido urbano multiforme (Solà-Morales, 2008), porque a cidade se dá onde público e privado se mesclam.
Outros autores estão igualmente interessados nessa atualização, como Gausa (2001) que deriva o conceito de espaço coletivo de Solà Morales para "espaço relacional", não mais composto de modelos cívicos, mas de situações mestiças, aberto à transformação e gerador de ação e mistura, não destinado somente ao passeio, mas também ao estímulo pessoal e compartilhado:
Um espaço autenticamente coletivo aberto ao uso, ao desfrute, ao estímulo, à surpresa: à atividade. À indeterminação do dinâmico, do intercâmbio entre cenários ativos e passantes-usuários-atores-ativadores. (Gausa, 2001, p. 204)
Para que o espaço seja verdadeiramente público ele deve ser "praticado" (Certeau, 1990) para que seja transformado por suas experiências (Monet, 2009 apud Páramo e Burbano, 2014). Devemos ter em mente o espaço coletivo como a finalidade das intervenções na cidade, criando-os por meio da qualificação de espaços hostis, subutilizados ou abandonados, reconquistando seu sentido público, assim como por meio da coletivização do espaço privado. As intervenções temporárias, nesse sentido, são estratégias de grande potencial. Abordaremos um mecanismo especialmente importante para alcançá-lo, que denominaremos "dissolução dos domínios".
Dissolução dos domínios público e privado
Desde o século XIX a oposição entre espaço público e privado é um tema de grande relevância. O clássico mapa figura-fundo, que recortava as áreas públicas da cidade conferindo-lhes superioridade sobre os espaços privados, consagrouse como ferramenta básica para a compreensão e criação de espaços urbanos, sendo utilizada até tempos recentes. Entretanto, a cidade do século XXI ganhou complexidade tal que esta distinção não parece mais tão clara, mesmo em contextos mais antigos (Sansão-Fontes, 2013, p. 119).
As categorias do público e do privado diluemse e, segundo Solà-Morales, são menos úteis atualmente. De certa forma essa diluição já havia sido sugerida por Nolli, quando eternizou seu mapa figura-fundo de Roma no século XVIII, que considerava como "figuras" os edifícios públicos e religiosos representativos da vida coletiva, que continham o espaço público da cidade em seu interior. Ou mesmo, na emblemática Paris de Haussmann no século XIX, havia ficado evidente por meio dos usos das calçadas por cafés, responsáveis pelo estabelecimento de uma gradação que trazia complexidade ao espaço público.
Porém, uma vez que os espaços de convívio vêm mudando aceleradamente de configuração, o esforço seria então o de coletivizar esses espaços ambíguos, fazendo-os cada vez mais públicos, menos segregados ou protegidos, porque a boa cidade é a que consegue dar valor público ao privado (Solà-Morales, 1992). Os espaços de possibilidades são precisamente essas áreas de limites indefinidos, não óbvios, que não contém um arranjo de setores espaciais, mas uma aglomeração crescente e potencial de oportunidades (Stavrides, 2014, p. 83).
Algumas ações introduzidas pelas intervenções temporárias vêm ao encontro dessas ideias, trabalhando no sentido da dissolução dos domínios: tanto os espaços públicos podem ser absorvidos por usos particulares, quanto os espaços privados podem adquirir utilização coletiva. Rubio, Reinoso e Fernández (2008) chamam atenção para as novas relações público-domésticas, hoje mais complexas e ricas do que antes, sobretudo nos espaços intermediários, que possibilitam simultaneamente o doméstico (por constituírem privacidade) e o público (por possibilitarem o engajamento social).
Metodologia
O LabIT trabalha com uma metodologia que abarca ações teóricas, ações aplicadas e ações experimentais. As ações teóricas objetivam criar quadros de referência e aumentar a soma de saberes disponíveis, centrando-se nas diversas abordagens das intervenções temporárias e do urbanismo tático, envolvendo apropriações espontâneas do espaço, arte pública, performances no espaço urbano, festas de rua e intervenções arquitetônicas efêmeras. As ações aplicadas compreendem o levantamento, análise, interpretação e mapeamento de intervenções temporárias, em que uma cartografia serve de apoio para a organização e disponibilização das intervenções catalogadas. As ações experimentais são aquelas que colocam em prática o conhecimento adquirido e sistematizado nas outras duas etapas, compreendendo a concepção e execução de intervenções temporárias concretas no espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro.
A pesquisa está em curso desde 2011 e já produziu outros resultados parciais, alguns deles integrantes das referências bibliográficas desse artigo. O presente enfoque busca trazer uma abordagem que ainda não havia sido explorada nos trabalhos anteriores, que é estabelecer uma relação entre as intervenções temporárias cariocas e a criação de novos espaços coletivos para a cidade.
O processo mediante o qual se avaliam as intervenções temporárias para discutir a relação entre o público e o privado toma como base os três tipos de ação do LabIT, articulando a conceituação do espaço coletivo com a cartografia e as intervenções efetivas realizadas. A ferramenta utilizada para avaliar os eventos escolhidos é a cartografia (site), que permite inúmeras comparações entre as intervenções mapeadas, já que as informações cadastradas seguem uma estrutura comum, reunindo categorias como contexto, atores, espacialização, suporte, frequência, duração, localização e data, além da descrição de cada evento.
Cabe ressaltar que dentro do universo geral de 130 intervenções mapeadas pelo LabIT até o momento, não são todas as que colocam a relação público/privado em discussão. Ou seja, neste artigo lidamos com uma seleção de 16 casos de intervenções que trabalham para a dissolução dos domínios, nos dois sentidos possíveis. No primeiro caso —espaços públicos absorvidos por usos particulares— a seleção se deteve às intervenções realizadas pelo laboratório acrescidas de outras realizadas nos arredores cujos enfoques ilustrem situações de cunho privado, doméstico ou íntimo no espaço público (debate, cinema, sala de jogos, leitura, pista de dança, espaço de trocas, cozinha, chuveiro, dormitório e sala de estar).
No segundo caso —espaços privados que adquirem utilização coletiva— a seleção baseou-se na busca pelas situações de "interior privado", disponíveis na base de dados do site, situação em que fica clara a ideia da coletivização do suporte.
A apresentação dos resultados se estrutura na leitura do aspecto de diluição dos domínios de cada uma das intervenções (usos privados em espaços públicos/usos públicos em espaços privados) além de desdobrar as transformações temporárias em algumas consequências mais duradouras no desenvolvimento futuro de cada espaço.
Resultados — Intervenções temporárias: dissolvendo domínios
Dentro de um amplo campo de intervenções temporárias que vêm sendo difundidas recentemente, é possível identificar algumas práticas no Rio de Janeiro que tensionam a distinção entre espaços públicos e privados. Analisaremos casos representativos dos dois aspectos da dissolução dos domínios.
Dissolvendo domínios 1: usos privados em espaços públicos
Algumas intervenções tratam da apropriação dos espaços públicos por atividades de cunho privado. Esse tipo de privatização dinamiza os lugares e congrega as pessoas e não deve ser confundido com a privatização (negativa) do espaço advinda da avidez comercial cujo fim é o lucro. Formas tradicionais dessa apropriação, comuns em vários contextos mundiais, são as refeições públicas ao ar livre com fins de socialização, uma vez que habitualmente esses momentos caracterizam o âmbito doméstico.
No entanto, ampliando a apreciação do problema, existem intervenções que vão além do objetivo da socialização e exploram os campos da arquitetura e da arte. Podemos apresentar o Park(ing) Day (Rebar, 2005) como o primeiro exemplo desse deslocamento. Partindo do questionamento sobre o excesso de área mal aproveitada, exclusiva dos automóveis, que poderia atender melhor a coletividade, essa intervenção anual, feita por cidadãos, artistas, arquitetos e ativistas, propõe a transformação temporária de uma vaga de rua em área de lazer, de forma simultânea em várias cidades do mundo.
A intervenção, celebrada na terceira sexta-feira de setembro em comemoração ao Dia Mundial sem Carros, nasceu em São Francisco, Estados Unidos, em 2005. A instalação pioneira teve duração de apenas duas horas, mas, devido ao sucesso, transformou-se em um movimento internacional de criação de espaços coletivos temporários, que podem tanto reproduzir espaços públicos quanto propor a publicização de usos privados. (Figura 2)
Figura 2. Park(ing) Day São Francisco. Data:m 16 de novembro de 2005. Lugar: 1st and Mission Streets, San Francisco, CA
Fonte: Rebar Group, Inc 2005.
As versões cariocas do Park(ing) Day aconteceram inicialmente em três edições na Praça Tiradentes e posteriormente na Praça São Salvador. A primeira versão em 2011, "Debate na Vaga" (Sansão-Fontes et al. 2011), propôs uma conversa com personalidades ligadas ao governo e a ONGs, cujo tema foi a relação carro versus espaço público. Para espacializar essa atividade, foi erguida uma estrutura leve de bambu com a forma da vaga (Figura 3), trazendo para o espaço público o que estaria usualmente ocorrendo no Centro Cultural localizado no imóvel em frente. A intervenção, ao mesmo tempo em que potencializou um espaço público subutilizado e "privatizado" (uma vaga de carro que poderia atender a somente uma pessoa em duas horas), convertendo-o em um espaço coletivo, subverteu o uso da rua por meio de uma gradação de usos que questionou os limites entre o público e o privado.
Figura 3. Debate na Vaga. Data: 16 de setembro de 2011. Lugar: Praça Tiradentes,m Rio de Janeiro
Fonte: Stefano Aguiar e Wagner Pinheiro.
A segunda versão em 2012, "CineVaga", (Sansão-Fontes et al. 2012) criou um cinema dentro da vaga, com projeções de recortes de filmes cujo tema foram os conflitos gerados pelo excesso de carros nas ruas. Foi utilizada a mesma estratégia da estrutura de bambu (Figura 4), porém com proposta formal distinta, simulando um espaço interior. Mais uma vez lidou-se com a conversão do espaço individual em espaço coletivo e com a subversão de uso, do "público" da rua para o "privado" do cinema.
Figura 4. CineVaga. Data: 21 de setembro de 2012. Lugar: Praça Tiradentes, Rio de Janeiro
Fonte: Stefano Aguiar.
Em 2014, a intervenção "Joga na Vaga!" (SansãoFontes et al. 2014) transformou o estacionamento em um ambiente de jogos, onde a cada hora uma camada-jogo era retirada e usada para ocupar a praça. Pela terceira vez foi utilizada a mesma estratégia de construção leve em bambu para dar forma a um uso imprevisto no espaço público (Figura 5), obtendo-se resultados como nos anos anteriores.
Figura 5. Joga na Vaga! Data: 19 de setembro de 2014. Lugar: Praça Tiradentes, Rio de Janeiro
Fonte: Stefano Aguiar.
Finalmente em 2015, realizada em outro local, a proposta "Estação Árvore" (Sansão-Fontes et al., 2015) trouxe ao espaço público uma sala de leitura e espera para embarque em um riquixá que circulava pelo bairro. O projeto abordou o espaço de forma mais aberta, propondo três coberturas-árvore que definiam um espaço flexível para acomodar as diversas atividades propostas (Figura 6), a fim de se atingir resultados semelhantes. Cabe ressaltar que todas as edições terminaram em festa, onde o piso da vaga se converteu em pista de dança.
Figura 6. Estação Árvore. Data: 18 de setembro de 2015. Lugar: Rua Esteves Júnior, Rio de Janeiro
Fonte: ITDP Brasil.
Em todos os casos vemos o extravasamento de usos normalmente realizados em espaços fechados (debate, cinema, jogo de tabuleiro e leitura) para o espaço público-privado subutilizado, convertendo-o em espaço coletivo.
Após alguns anos de repetidas ações dessa natureza, podemos apontar algumas consequências, sejam diretas ou indiretas, temporárias ou permanentes. Temporariamente, as ações foram capazes de incentivar o uso mais intenso da Praça Tiradentes, despertando novas intervenções e consolidando seu potencial festivo eventual, sempre tensionando os limites entre o público e o privado. Permanentemente, colaboraram para a criação de uma política de ocupação de estacionamentos de rua por meio dos parklets (que no Rio de Janeiro ganharam o nome de Paradas Cariocas por meio do decreto 39.983 de 10 de abril de 2015), extensões de calçada executadas e mantidas pela iniciativa privada e voltadas ao uso público, expondo mais uma forma de relacionar o privado e o público nas intervenções urbanas.
Outro exemplo mais modesto de intervenção que teve como inspiração a sala de leitura foi a Biblioteca Itinerante Livre.Ria (2014-2015). Baseada no conceito de Urban Hacking, termo originado da ideia de "hackear" a cidade, quebrando suas limitações e construindo espaços mais habitáveis, a intervenção propôs a ocupação do espaço público da Lagoa Rodrigo de Freitas por meio de uma biblioteca colaborativa que oferecia livros gratuitamente por oito horas. Uma cobertura de lona definiu o espaço coletivo da biblioteca, surgido da espacialização de um uso interior no espaço exterior. Ações como esta vêm ganhando força no Rio de Janeiro e auxiliando na popularização da cultura de trocas no espaço público.
Além de versões cariocas de intervenções em contextos mundiais, outras intervenções originais de cunho semelhante vêm se intensificando na cidade nos últimos anos, sendo o coletivo OPAVIVARÁ! um dos mais atuantes nesse campo. Em 2012, o grupo apropriou-se por um mês da Praça Tiradentes, durante as quartas-feiras e sábados, com o projeto OPAVIVARÁ! ao Vivo! (OPAVIVARÁ!, 2012). O coletivo de arte propôs a ocupação do espaço público e agregou as pessoas por meio de uma prática doméstica, colocando em contato o domínio público da praça com a intimidade da cozinha. A ideia foi subverter o "estar junto" cotidiano, apresentando aos transeuntes uma ocupação inusitada, formalizada por meio de usos como mesa coletiva, fonte d'água, lavanderia e sala de estar, todos eles dispositivos relacionais de acesso livre para a população, bastando sentar e participar da preparação da comida, refeição e posterior limpeza do lugar (Figura 7), tendo a socialização como um ato transversal.
Figura 7. OPAVIVARÁ! ao vivo na Praça Tiradentes. Data: 19 de maio de 2012. Lugar: Praça Tiradentes, Rio de Janeiro
Fonte: Adriana Sansão-Fontes.
Cabe ressaltar que até alguns anos atrás a Praça Tiradentes se encontrava gradeada, sendo essa intervenção a primeira ação no local após a reforma que devolveu à população seu franco acesso. Nesse sentido, a intervenção foi simbólica ao questionar o papel cotidiano do espaço público contemporâneo, clamando pela participação da população no que chamaria Debord (2002 [1967]) de "construção de situações". Trazendo o uso doméstico da cozinha para o espaço público, o coletivo logrou, por meio do deslocamento e da construção de uma situação, criar um espaço coletivo pleno no centro da cidade.
Na carona de ações bem-sucedidas como esta, recentemente observamos desdobramentos de ações relacionadas à comida na Praça Tiradentes. O evento mensal Tiradentes Cultural, promovido pela rede de centros culturais estabelecidos nas redondezas da praça, mescla atividades culturais com gastronomia de rua com a finalidade de auxiliar na revitalização da área, envolvendo os próprios atores que operam em seu entorno e evidenciando mais uma faceta dessa colaboração entre o privado e o público na região.
No mesmo contexto urbano da área central acontece periodicamente o projeto Parede Gentil, concebido em 2005 pela galeria de arte A Gentil Carioca para sua empena cega, buscando trazer a arte para o espaço urbano, conectando-a à população. A empena cega desse imóvel configura um pequeno largo de caráter residual, raramente apropriado e que representa um espaço de oportunidade para os questionamentos da arte. A cada edição, um artista é convidado a desenvolver uma obra específica para a parede, que permanece no local por quatro meses.
A intervenção "Chuvaverão" (OPAVIVARÁ!, 2014), realizada pelo mesmo coletivo OPAVIVARÁ!, consistiu em chuveiros públicos reais instalados na empena cega, voltados para o largo residual, que convidavam os transeuntes a se refrescarem durante o verão quente da cidade (Figura 8), o que de fato aconteceu em diversos momentos. Outras intervenções mais antigas lidaram com os mesmos deslocamentos. A obra "Cidade Dormitório" (Ferraz, 2007) propôs a instalação de uma estrutura de oito andares, como um beliche, que podia ser usada por passantes, moradores de rua ou quaisquer usuários interessados em interagir e descobrir novas visadas, interferindo na paisagem cotidiana e buscando criar novas funções para o espaço público com um equipamento versátil. "À Parede" (Primo e Primo, 2009), por sua vez, criou uma casa nas alturas, onde os artistas "moraram" durante parte do dia, movendo-se entre os espaços por meio de uma parede de escalada (Sansão-Fontes, 2011) (Figuras 9 e 10).
Figuras 8, 9 e 10. Chuvaverão, Cidade Dormitório e À Parede. Data: maio de 2014 / maio de 2007 / junho de 2009. Lugar: Galeria A Gentil Carioca, Centro, Rio de Janeiro
Fonte: Coletivo OPAVIVARÁ! (8) e A Gentil Carioca (9 e 10).
Os três exemplos trataram da publicização de intimidades, como o ato de tomar banho e dormir, conformando a partir delas um novo espaço coletivo em área antes residual.
Trata-se de um projeto continuado que se mantém em plena atividade há mais de dez anos, iniciado em um tempo em que a região ainda era uma área degradada do centro. Hoje, em um contexto de revitalização, o projeto se soma às demais ações já apresentadas nas redondezas, catalisando outras intervenções artísticas no espaço público, reforçando a vocação cultural do local e auxiliando na animação urbana. Vale mencionar a intervenção posterior Sofaraokê (OPAVIVARÁ!, 2014), projeto também em parceria com a galeria que se apropria dos videokês populares existentes na região, criando um objeto-arte.
Finalmente, a intervenção "Ilustre" (Évora, 2008), realizada em rotatória no bairro do Catete, teve como proposta a religação de tempos históricos: a contemporaneidade e os passados do escritor José de Alencar e do lugar. A intervenção, integrante do Prêmio Interferências Urbanas, reativado em 2008 nos bairros do Catete e Glória, consistiu na colocação de um lustre de cristal, projetado especialmente para a intervenção, suspenso sobre a estátua do escritor. A iluminação criou uma cena, trazendo um elemento pertencente ao espaço interior (lustre) suspenso sobre o escritor sentado em praça pública. A ação mesclou os domínios público e privado e agregou um significado à obra, muitas vezes invisível para os transeuntes por encontrar-se em um entroncamento viário. (Figura 11)
Figura 11. Ilustre. Data: 24 de outubro de 2008. Lugar: Praça José de Alencar, Catete, Rio de Janeiro
Fonte: Roberta Alencastro.
Por encontrar-se em uma posição ilhada e de mais difícil transformação, não podemos nesse caso identificar nenhuma consequência da ação além da própria memória coletiva formada pela sua rápida presença estratégica.
Dissolvendo domínios 2: usos públicos em espaços privados
Ações culturais em edifícios abandonados ou propriedades privadas constituem outro aspecto da dissolução dos domínios. Elas têm sido bastante comuns como formas de recuperar edifícios abandonados, estruturas obsoletas resultantes de processos de desindustrialização ou esvaziamento dos centros, ou mesmo como forma de potencializar bairros que concentram ateliês de artistas. A ocupação de áreas desativadas ou potenciais com ações ou intervenções artísticas, juntamente com a formação ou consolidação de determinadas identidades, constitui uma ação de dissolução de domínios público e privado, abrindo o espaço interior ao uso público e transformando-o em um espaço coletivo não somente por meio da apropriação, mas também da "publicização".
Para analisar essa postura, é necessário sair do universo brasileiro e resgatar o projeto pioneiro de abertura de ateliês no mundo, referência mundial em eventos do gênero, o Cambridge Open Studios (1960). Essa intervenção teve início ainda na década de 1960, quando um pequeno grupo de artistas convidou a população a visitar seus estúdios e ver como sua arte era produzida, visando sua desmistificação e democratização. Essa estratégia foi e é inspiração para muitos projetos no mundo até hoje, sendo um caso notável de expansão do espaço coletivo da cidade a partir da abertura de espaços privados para conhecimento e apropriação do público.
O Rio de Janeiro há décadas vem absorvendo e reinterpretando essas práticas artísticas no espaço urbano. Os projetos de ateliês de portas abertas existem desde a década de 1990, inaugurados com o Arte de Portas Abertas (1996), circuito de artes visuais que dilui os limites entre o público e o privado no bairro de Santa Teresa. O evento é caracterizado por dois movimentos, a abertura dos ateliês para o público e as intervenções de arte pública nos espaços abertos do bairro. Enquanto a arte sai dos ateliês para tomar o espaço público e ocupar o lugar da coletividade, o público expande-se para dentro do espaço privado com a abertura dos ateliês para visitação, inventando-se novos espaços coletivos. (Figura 12)
Figura 12. Arte de Portas Abertas. Data: 4 de setembro de 2010. Lugar: Santa Teresa, Rio de Janeiro
Fonte: Adriana Sansão-Fontes.
Essa estratégia de abertura de ateliês posteriormente expandiu-se para diferentes contextos, sob outras denominações. O Circuito das Artes do Jardim Botânico é um roteiro no qual desde 2009 cerca de cinquenta ateliês e estúdios de artes abrem suas portas para visitação durante dois finais de semana consecutivos. Outra derivação é o Projeto Mauá (2002), no Morro da Conceição, centro da cidade, importante circuito para a revitalização urbana e cultural local, que atrai a atenção para uma área ainda desconhecida para muitos cariocas. A movimentação temporária de entra e sai dos ateliês cria uma atmosfera de intimidade e vitalidade no lugar. Como nos eventos anteriores, também representa a dilatação do espaço coletivo para o interior das edificações privadas, expandindo o domínio público do bairro e coletivizando a cidade, mesmo que por somente algumas horas. (Figura 13)
Figura 13. Projeto Mauá. Data: dezembro de 2007. Lugar: Adro Igreja de São Francisco da Prainha, Morro da Conceição, Rio de Janeiro
O impacto do projeto de ateliês de portas abertas, no caso específico de Santa Teresa, foi bastante positivo. Estudos acadêmicos como o de Prado (2006) o colocam como um dos catalisadores do processo de revitalização do bairro, que na década de 1990 se encontrava profundamente degradado. O evento pioneiro se "universalizou" na cidade, sempre trabalhando para o reforço da vocação artística nos bairros por onde passou. No caso do Morro da Conceição, o projeto promoveu a inserção do bairro na rota cultural do centro, estimulado por um grande evento de arte que ocorre anualmente na cidade, o ArtRio.
Recentemente, o projeto Permanências e Destruições (2015), com curadoria de João Paulo Quintella, propôs, por meio de instalações artísticas, a ocupação de ruínas, lugares em processo de desaparecimento, terrenos baldios, áreas sem uso e vazios urbanos. Os espaços privados temporariamente transformados em espaços coletivos foram o Hotel Sete de Setembro —antiga Casa do Estudante (Giacomini e Romano, 2015), a Estamparia Metalúrgica Victoria, em Benfica (Paula, Nóbrega e Miúda, 2015) e a Piscina do Raposão, ou edifício Raposo Lopes, em Santa Teresa (Pontogor, 2015).
A Antiga Casa do Estudante pertence à UFRJ e está atualmente desocupada, com obras de restauração e adaptação desde 2001. Esta condição a torna fechada à visitação do grande público, permitindo apenas alguns eventos organizados pela própria universidade, como colóquios e debates. O projeto Permanências e Destruições possibilitou a visitação deste patrimônio cultural e a criação de obras de arte especificamente para o local, deixando seu espaço, sua história e materialidade reverberarem na criação dos artistas. (Figura 14)
Figuras 14 e 15. Hotel Sete de Setembro e Estamparia Metalúrgica Victoria. Data: janeiro de 2015. Lugar: Flamengo e Benfica, Rio de Janeiro
Fonte: Aline Couri Fabião.
Já a Estamparia Metalúrgica e o Edifício Raposo Lopes são hoje, respectivamente, um estacionamento e um condomínio. Durante o projeto, abriram suas portas para o público, que pôde conhecer seus interiores privados. Na Estamparia, além do galpão central, onde os artistas interviram, foi possível deambular pelos três andares do edifício anexo, que já serviu também como campo de paintball. O que se experimentava era uma paisagem-passada, com antigos objetos da estamparia abandonados: formulários datados de 1970, inventários, mesas, cadeiras, sofás, como se os antigos proprietários tivessem fugido deixando tudo para trás. Já a visita ao Raposão permitiu —além da bela vista da cidade— uma experiência sonora imersiva dentro da piscina de 25 metros, que faz parte da história do bairro de Santa Teresa. A piscina está atualmente desativada por causa de infiltrações e do alto custo de manutenção. (Figuras 15 e 16)
Figura 16. Piscina do Raposão. Data: janeiro de 2015. Lugar: Edifício Raposo Lopes, Santa Teresa, Rio de Janeiro
Fonte: Aline Couri Fabião.
Distintamente aos projetos de abertura dos ateliês, que estimulam a requalificação dos bairros, mas que operam em contextos de forte identidade local e em plena atividade, as três intervenções do projeto Permanências e Destruições, ao interferirem em locais abandonados, tiveram como missão adicional ressignificar os lugares por meio das ações em seus interiores privados. São todas intervenções que operam com a dissolução dos domínios público e privado por meio da publicização de interiores, porém, representam estratégias distintas de criação de espaços coletivos para a cidade.
As estratégias demonstraram-se exitosas e, como consequência, o projeto realizou-se novamente em 2016 abrindo e coletivizando novos endereços, como a Torre H, na Barra da Tijuca (Venosa, Albuquerque, Wagner, Vidor e Steenbock, 2016), inscrevendo-os na memória coletiva carioca.
Conclusões
Intervenções temporárias permitem observações detalhadas da cidade, de suas características e potencialidades. Por meio dessas provocações e "situações construídas" —como diriam os situacionistas— são propostos outros modos de olhar a cidade, suspensões no tempo corrido e otimizado dos relógios, pausas nas atribulações de trabalho e consumo. Permitem um desligamento do modus operandi cotidiano.
As intervenções analisadas potencializam os domínios dos pedestres, incentivando-os a andar à deriva, trocar experiências, conhecer lugares antes fechados, deslocar os usos dos espaços públicos convencionais e adentrar domínios particulares, criando espaços coletivos, ainda que efêmeros. Deslocando situações de cunho privado, doméstico ou íntimo, como o auditório, o cinema, as salas de jogos, leitura e estar, a pista de dança, a cozinha, o chuveiro e o dormitório para o espaço público; ou abrindo interiores privados para as deambulações artísticas e para a curiosidade do público, as intervenções temporárias tensionam o público e o privado e, confirmando nossa hipótese, espaços coletivos passam a surgir em espaços tradicionalmente entendidos como públicos e privados. Adicionalmente, elas motivam transformações de caráter mais duradouro: enquanto as intervenções mais antigas auxiliaram na revitalização de bairros e espaços públicos (eventos de aberturas de ateliês, Parede Gentil) e as intervenções frequentes vêm contribuindo para a elaboração de novas políticas públicas (Park(ing) Day), as mais recentes começam a se estabelecer e são promessas de novas transformações (Permanências e Destruições). Algo que há de comum entre todas elas é permitir que o efêmero passe a fazer parte da memória coletiva da cidade.
As intervenções temporárias agem como escapes ao tempo burocrático e lento das grandes intervenções urbanas. São como levantes, momentos de pico e de epifania. Vive-se, temporariamente, de modo outro que não o tempo produtivo, mercadológico e pragmático. Mas, mesmo sendo aparentemente detalhes, possíveis de serem vistos como irrelevantes ou ínfimos, têm um poder enorme: devolvem o espaço urbano aos praticantes da cidade, àqueles que vivem cada esquina, cada passo, cada empena, cada largo.
É na intervenção temporária que os sujeitos--praticantes da cidade ganham papel de protagonistas de pequenas ações, que podem motivar e derivar outras tantas. Intervenções temporárias motivam práticas desviantes da cidade-espetáculo, vivências coletivas em grupos heterogêneos, incluindo a crítica sobre o espaço em que vivemos. Sua materialidade efêmera não deixa de ser parte da construção imaterial, em que ideias e sonhos não têm data de validade. Fomentam a vontade de construir coletivamente nossas cidades futuras.
Referências
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